Diretora referência do cinema soviético é tema do novo texto da professora Carla Rabelo na Revista Exibidor

Kira Muratova, 86 anos

 

“Nos tempos soviéticos, depois de O Longo Adeus (1971), ficou claro que qualquer filme que eu fizesse seria censurado. E comecei a sonhar …” (Kira Muratova, 2016 – tradução nossa)*.

 

A cineasta ucraniana Kira Heorhiyivna Muratova faria 86 anos no dia 5 de novembro de 2020. Diretora importante do cinema soviético deixou um legado fílmico experimental sobre sujeitos em contextos socioculturais distantes, assim como seus filmes que só recentemente povoam algumas pesquisas, mostras dedicadas às mulheres e festivais pelo mundo. Sua cinematografia percorre tensões humanas, elementos culturais pitorescos com personagens imperfeitos, sem convenções, e isso denota um pouco do seu estilo que é completamente difícil de ser encaixado em quaisquer rotulações.

 

Kira Muratova teve pai russo e mãe romena judia, ambos membros ativos do Partido Comunista. O pai integrou o movimento guerrilheiro antifascista na Segunda Guerra Mundial, mas foi preso pelas forças romenas e baleado após interrogatório**. Fatos que, dentre outros, provavelmente incidiram na criação artística da diretora ou mesmo em suas posturas de vida. Entretanto, o patrulhamento ideológico foi implacável com a cineasta que chegou a ser classificada como não confiável politicamente e teve alguns de seus filmes censurados (Breves Encontros, 1967; O Longo Adeus, 1971)  por não estarem em consonância com os cânones estéticos do realismo socialista***.

 

A obra da diretora opera como referência robusta do cinema russo contemporâneo porque nunca se furtou em testar limites narrativos e também tecer análises humanas sobre o que via, vivia. Seu filme mais consagrado foi o elucidativo Síndrome Astênica (1989) que chegou ao Festival de Berlim conquistando o Urso de Prata e brindando novos olhares e críticas sobre sua obra. O filme, proibido durante a perestroika (reconstrução) e logo liberado, apresenta as tensões da vida numa colapsada União Soviética. Segundo a própria cineasta, este filme é sua única obra de cunho sociopolítico e por isso costumam chamá-la de cineasta corajosa. “Costumam dizer que sou uma diretora muito corajosa e honesta. O que diabos a bravura tem a ver com isso? Só quero fazer filmes: de uma forma interessante, de uma forma difícil, diferente, à minha maneira ou mesmo de uma forma simples. Chame isso de honestidade, se quiser. Mas então eu não entendo o que é desonestidade” (Kira Muratova, 2016 – tradução nossa)*.

 

Um cinema “honesto” como o de Kira Muratova, que inclusive recebeu mais de 15 prêmios internacionais, merece destaque pela observância que ela deixa sobre os sujeitos, o incomum presente nos seres humanos, suas estranhezas. As tramas desafiam olhares e escutas, provocam pelo menos um desconforto, e muitas vezes angústia. Em relações profundas com a psicanálise e a filosofia existencial, Kira nos provoca que olhemos para dentro de nós mesmos em fricção com o mundo, e enquanto componentes dessa humanidade (in)capaz de tudo. Ela nos leva a questionar o sentido da vida e sua estreita relação com a dor, com a finitude, e a morte.

 

Outro lado implacável e áspero da vida da cineasta foi a dificuldade em produzir seus filmes, em fazê-los circular (distribuição e exibição), o que ressaltou a amargura e certo desencanto no final de sua vida: “Eu não faço filmes agora, eu renunciei a filmar. É assim que eu chamo – eu renunciei. Eu disse que não faria mais filmes, não só por razões de saúde. Eu acho que algo rompeu em mim, algo acabou, eu não quero mais e não gosto de muitas coisas. Coisas que sempre detestei – todas as coisas que acompanham o cinema, que nada têm a ver com a minha profissão, mas que continuam presentes nesta indústria, como a chamam hoje. E mesmo quando não era chamado de indústria, quando era chamado de arte, isso ainda estava lá. Eu agüentei tudo isso, coloquei de lado, gostava tanto de fazer que fingia não ver todas as coisas nojentas que achava nisso. Porque esse amor era mais forte. E agora está terminado. Eu não quero mais nada. Em suma, é normal. É normal” (Kira Muratova, 2016 – tradução nossa)*.

 

Assistir a qualquer filme da diretora Kira Muratova é observar esse amor forte e sua honestidade singular, é também ampliar o repertório fílmico para um lugar difícil, desconcertante e desafiador. Seguem alguns de seus filmes: Breves Encontros (1967), O Longo Adeus (1971), Conhecendo o Grande e Vasto Mundo (1978), Mudança de Destino” (1987), Síndrome Astênica (1989) e Três Histórias (1997), Motivos Tchekhovianos (2002), Dois em um (2007).

 

* Tradução de trechos de entrevista extraída do East European Film Bulletin (entrevista em russo à Alexey Artamonov, traduzida ao inglês por Daniil Lebedev – “Interview with Kira Muratova – 2016”).

** Informações disponíveis em: The Guardian.

*** Informações disponíveis em: Ilustrada/Folha de São Paulo.

Referência Bibliográfica/como citar: RABELO, Carla. KIRA MURATOVA, 86 ANOS. Revista Exibidor, São Paulo: novembro/2020. Disponível em: <https://www.exibidor.com.br/artigo/227-kira-muratova-86-anos> Disponível completo em: <http://cursos.unipampa.edu.br/cursos/cultura/> Acesso: 23/11/2020.

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